Para que o mundo não acabe
A reza e a forte
emoção
Atanásio é um dos maiores rezadores Kaiowá Guarani na
atualidade, no Mato Grosso do Sul.
A Aty Guasu estava animada com fortes debates, naquele início
de dezembro de 2017. Repentinamente se iniciou uma movimentação em torno do
Nahanderu. Assim foi registrada pela liderança Arnaldo:
“Atanásio começou a rezar uma reza forte invocando os entes sagrados
para acabar com o mundo. Entrou em transe e suou muito. Por sorte seu Jorge
chegou chorando e pediu que Atanásio não acabasse a reza ainda. Que tivesse fé.
Atanásio estava em transe e não conseguia mais parar enquanto cada Kaiowá e Guarani
sentia um aperto em seu coração e ninguém conseguia fazer nada, apenas chorar
pelo fim do mundo, mas Jorge teve força e impediu Atanásio de continuar. Quase
morremos todos.
Atanásio então pediu calma e ensinou uma outra reza que serve como
antídoto para a reza dele para que quando os espíritos o conduzam para acabar com
o mundo outros rezadores possam intervir”.
Atanásio falou também sobre o território: “ Temos reza para
amenizar a dor e as feridas espirituais. O pai (pa’i kuara) e nosso grande Deus
vão nos ajudar. Meu pai me ensinou para fazer o bem para os Guarani e Kaiowá.
Mas os brancos não. Muitas vezes temos muita misericórdia dos brancos e os
brancos nunca tiveram de nós. Para que os jovens, crianças, possam seguir os
caminhos de antes, ajudar o povo e saber lutar contra o branco é preciso
perguntar aos mais velhos como são as coisas em nossa cultura”.
Não poderia deixar passar esse final de 2017 e início de
2018 sem deixar esse registro que muito realisticamente expressa a luta, a
resistência e a força dos Kaiowá Guarani. É nesse contexto de profunda
espiritualidade e sabedoria que passos lentos, mas seguros, vão sendo dados por
esse povo, especialmente na conquista de suas terras, no retorno a seus tekohá
(terras tradicionais).
No decorrer do ano que acaba, várias delegações desse povo
estiveram em Brasília denunciando as violências que estavam sofrendo pelos
interesses políticos e econômicos da região.
Porém, nada os demove ou intimida nessa firme determinação
de continuar lutando por seus direitos, particularmente por seus territórios
sagrados, fonte e base de suas vidas conforme sua cultura.
Apesar do decreto de morte e genocídio em curso, eles
lentamente vão conseguindo pequenas vitórias, que oxigenam sua determinação de
conquista de seus direitos. No final do ano, a decisão da Justiça Federal, 3ª Região,
suspendendo a reintegração de posse do tekohá Bakurity, no município de
Dourados, foi muito importante.
Uma delegação veio a Brasília exigir agilidade na demarcação
das terras, dando continuidade nos processos já em andamento e constituindo
Grupos de Trabalho para identificar as terras ainda sem providência, como Ceroi
e Takuaju Laranjal nos municípios de Jardim e Guia Lopes da Laguna.
Nos últimos anos, vem se consolidando o processo de
organização e resistência, destacando-se a Aty Guasu (Grande Assembleia) com
participação ampla das aldeias/comunidades, além das Aty Guasu das mulheres e
dos jovens. Além disso, os professores indígenas já têm um grande acúmulo de
luta e organização.
Que os mártires dessas lutas nas últimas décadas continuem
dando força e êxito às lutas desse heroico e resistente povo e a todos os povos
indígenas do Brasil.
Povos indígenas 2017: sob o fogo
cruzado do Estado
Os últimos anos têm sido talvez dos mais violentos,
ameaçadores e genocidas desse último meio século. Talvez nunca os Três Poderes estiveram
tão articulados em suas inciativas contra os direitos dos povos indígenas, do
que nesses últimos quatro anos. E nada indica que seja diferente nesse novo ano
que se inicia.
Se por um lado é possível prever um cenário de fogo cruzado,
de muita violência, também é verdade que esse quadro aterrorizante tem gerado
um promissor movimento de união e articulação dos povos indígenas e um
crescimento expressivo dos apoios e novos aliados, dentro e fora do país.
Acreditamos que a força dos encantados, dos deuses e dos espíritos
dos guerreiros garantirão mais um ano de vitórias da vida e do Brasil justo e
plural pelo qual todos estamos lutando.
Pode o mundo não acabar, porém só com a união e os valores e sabedoria dos povos originários do mundo será possível que a esperança de um mundo melhor para todos possa avançar. Caso contrário, a crescente destruição da natureza irá sim inviabilizar a continuidade da vida no planeta terra.
Egon Heck
Cimi, Secretariado nacional
Brasília, 1 de janeiro de 2018
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