Kaingang em
Brasília: entre trancos e barrancos
Sentados sobre tocos de madeira, sob a sombra de um
centenário pinheiro (pinus araucária), lideranças Kaingang, vão desfilando suas
dores seculares e traçando as estratégias de luta pela terra, pela vida, pelas
florestas e o meio ambiente. Vão
aquecendo seus corpos e corações nas chamas das grimpas, nas quais estão
assando os deliciosos pinhões. Não falta a rodada do chimarrão que ajuda a aquecer
as ideias e a indignação. Cenas comuns em meados do século passado.
Hoje, em Brasília, rodando pelos espaços dos Três Poderes,
os guerreiros Kaingang do Rio Grande do Sul, sentem a aridez, não apenas do
clima, mas dos corações endurecidos pela ânsia do poder e dos privilégios. Os “brancos” que invadiram suas terras,
derrubaram as florestas, poluíram os rios e rasgaram o ventre da mãe terra e de
seus filhos, vociferam contra os índios acusando-os de terem terra demais, e
que são indignos de continuar em cima das terras produtivas cobiçadas pelo
agronegócio.
Revoltados, trilham os caminhos do diálogo, da escuta
paciente, das falas iradas, da sensibilização e da conquista de solidariedade e
alianças. Não é fácil. Como habitantes originários dessas terras brasis, sentem
a dor sufocante da secular dominação, do desprezo e racismo, da invasão
permanente de seus territórios, da sua cultura e autonomia.
Memória como arma
O povo Kaingang, é um dos povos do tronco linguístico Jê,
guerreiros que ocupavam vastos territórios desse Brasil sul e central, que
opuseram enérgica resistência à invasão de suas terras, recursos naturais,
cultura e alma. Ainda hoje os povos desse tronco linguístico – como os Xavante,
Xerente, Krahô, Kayapó dentre outros
.
Com o avanço das frentes de ocupação e colonização,
principalmente por alemães, italianos e poloneses, a partir do século 19, os
Kaingang foram sendo empurrados para pequenas extensões de terra, verdadeiros
confinamentos. Mesmo essas terras Kaingang demarcadas, foram sendo alvos de
sucessivos esbulhos, principalmente a partir de meados do século 20.
A situação de invasão dessas reservas indígenas chegou a uma
situação dramática na década de 1970, quando áreas como Nonoai estavam ocupadas
por dez mil colonos e um mil indígenas Kaingang e uns poucos Guarani. O mesmo
fenômeno se deu em praticamente todas as reservas indígenas do sul do país. As invasões massivas eram estimuladas
especialmente por governantes e políticos na certeza de que essas terras seriam
tiradas dos índios e repartidas entre os colonos, fazendeiros e latifundiários.
O grito de revolta e
libertação
“Ou nós morremos embaixo dos pés dos invasores, ou colocamos
esses intrusos pra fora das nossas terras”. Essa foi a decisão tomada pelos
Kaingang na década de 1970. De um conflito dos Guarani com invasores da terra
indígena de Guarapuava-PR, em dezembro de 1977, foi a faísca que faltava para
deflagrar o movimento de desintrusão das terras indígenas do sul do Brasil. A
ação estratégica e guerreira de Nonoai foi emblemática. Queimando seis escolas de brancos numa mesma
noite, praticamente inviabilizaram a resistência dos invasores. O movimento de
desintrusão se alastrou como fogo na restinga, em todas as reservas indígenas
do Sul do Brasil. Milhares de famílias de não indígenas foram retiradas das
áreas como um verdadeiro movimento de retomada das terras e libertação do
aguilhão opressor.
Agora os Kaingang do Rio Grande do Sul, estão reorganizando
o grito de revolta e luta para garantir seus direitos, especialmente suas
terras. Dezenas de acampamentos indígenas clamam por providências urgentes.
Diante da inércia e irredutibilidade dos Três Poderes, aos Kaingang resta o
retorno às suas terras e a autodemarcação.
Fechando a rodovia em frente ao Palácio do Planalto,
conseguiram marcar um encontro com o ministro-Geral da Presidência da República
e outros representantes de ministérios. Infelizmente nada de mais concreto
poderão levar para suas terras. As
ameaças a seus direitos continuam nos Três Poderes. Porém, a presença é uma
forma de dizer em alto e bom tom, “não passarão sobre nossos direitos, a não
ser passando sobre nossos cadáveres”.
A presença em Brasília, nessa semana, foi uma vitória
importante da mobilização indígena nacional. Foi dada continuidade ao processo
de resistência e luta definido pelo movimento indígena. Estiveram nas ruas, nas
praças, nos ministérios, no Palácio do Planalto, na Câmara dos Deputados e no
Senado, e também no Supremo Tribunal Federal. Pintaram seus corpos com os
símbolos das metades Kaimé e Kainrukre, levaram flechas e bordunas, nessa
guerra sem trégua, pelos seus direitos. Escreveram cartas, protocolaram
documentos, exigiram respeito aos seus direitos e o cumprimento da Constituição
e legislação internacional.
Apoiaram a iniciativa dos senadores que conseguiram 42
assinaturas (mais da metade) contra a PEC 215: “A confirmação de direitos de
minorias não pode ficar suscetível a maiorias temporárias. A demarcação é um
ato técnico e declaratório. É incabível trazer essa matéria para o âmbito do
Congresso, um equívoco jurídico e politico, um atentado aos direitos dos povos
indígenas”.
Entre trancos e barrancos, barreiras e policiais,
burocracias e meias verdades, maldades incrustrados no poder adverso, seguirão
lutando, com a força guerreira e a proteção de Topen. Seguirão preocupados para
suas aldeias, mas com a certeza de mais um passo importante na conquista de seus
direitos a um chão, no Rio Grande do Sul.
Egon Heck
Cimi Secretariado Nacional
Brasília, 27 de maio de 2015.